quinta-feira, 27 de março de 2014

8º ano - Leitura - Crônica

Vamos nos preparar para a Semana de Literatura?

O tema do evento, não por coincidência, será futebol e teremos o prazer de ver a Literatura em Campo!
Enquanto aguardamos a Copa do Mundo, vamos ter contato com o 'futebol arte' da seleção através das crônicas de Nelson Rodrigues. 

Ninguém jamais retratou um jogo de futebol com tantos detalhes, com tanta paixão e com tanto cuidado quanto ele. Nosso autor é capaz de nos fazer sentir a dimensão épica (característica de feito heroico) das partidas.

Já que não pudemos ver o Brasil ser campeão em 1958, em 1962 e em 1970, vamos chegar um pouquinho mais próximo do 'escrete preciso' que nos garantiu esses três títulos mundiais!

Hum, não sabe o que é escrete? 

Sugiro que tenham dicionário por perto, pois apesar de crônicas terem linguagem descontraída, nosso ilustre autor nasceu em 1912 e seu vocabulário, por vezes, é antigo.

Brasil 5 x 2 Suécia, 29/6/1958, em Estocolmo. Brasil campeão do mundo.

O TRIUNFO DO HOMEM

(por Nelson Rodrigues)

Qualquer jogador do escrete brasileiro podia ser o meu personagem da semana. De Gilmar a Zagalo. De Zagalo diremos apenas o seguinte: — estava em todos os lugares ao mesmo tempo. De certa feita, foi até interessante. Zagalo salva um gol, sai com a bola e, em seguida, aparece lá na frente, na área adversária, desintegrando a defesa inimiga. Amigos, ontem o escrete era imbatível. Cada vez que um craque patrício apanhava a bola, partia em todas as direções, como aquele mocinho de fita em série. E, pela primeira vez, numa final de campeonato do mundo, um escrete vence de goleada, vence de banho. Mas, como eu ia dizendo: — a exibição do Brasil foi tão perfeita, irretocável, que, desta vez, qualquer um podia ser o meu personagem. 

Por exemplo: — Pelé, um menor total, irremediável, que nem pode assistir a filme de Brigitte Bardot. Ao receber o ordenado, o bicho, é o pai que tem de representá-lo. Pois bem: — Pelé assombrou o mundo. Não se limitou a fazer os gols. Tratava de enfeitá-los, de lustrá-los. Sim, poderia ser Pelé o homem desta página.

E, todavia, eu penso em Didi. Examinem a sua fisionomia, os seus traços. Há, nele, uma dignidade racial de Paul Robeson. “Grande jogador”, dizem todos. Mas não faltam os que duvidem do seu caráter, do seu brio, da sua alma. Nos jogos do certame carioca, é comum ouvir-se um torcedor esbravejando: — “Didi não está fazendo força! Didi está amolecendo!”. Quando se tratou de organizar o escrete, quase todo mundo gritou contra Didi. Uns juravam: — “Moacir é melhor!”. Outros diziam: — “Didi não é jogador para a Copa!”. Nos treinos da seleção, foi vaiado quantas vezes? Acabaram queimando o formidável jogador. Conclusão: — ele amarrou a cara e seu comportamento, em todo o Mundial, foi esmagador. 

Não se podia desejar mais de um homem, ou por outra: — não se podia desejar mais de um brasileiro. Ninguém que jogasse com mais gana, mais garra, e, sobretudo, com mais seriedade. Nem sempre marcava gols. Mas estava, fatalmente, por trás dos tentos alheios. Era ele quem amaciava o caminho, quem desmontava a defesa inimiga com seus lançamentos em profundidade. Com uma simples ginga de corpo, liquidava o marcador. E nas horas em que os companheiros pareciam aflitos, ele, com sua calma lúcida, o seu clarividente métier, prendia a bola e tratava de evitar um caos possível. 

Não foi só o jogador único, que os críticos europeus mais exigentes consideraram o maior da Copa. Foi algo mais: — um homem de bem. O que ele demonstrou de constância, de fidelidade, de bravura, de entusiasmo, basta para caracterizá-lo como um brasileiro de altíssima qualidade humana. A partir deste Mundial, o brasileiro começa a ter uma nova imagem de Didi. Repito: — passa a ver Didi como um homem de bem. Pois nós sabemos que nenhum escrete levanta um campeonato do mundo sem extraordinárias qualidades morais. De nada adiantará o futebol se o homem não presta. O belo, o comovente, o sensacional no triunfo de ontem está no seguinte: — foi, antes de tudo, o triunfo do homem. 

Eu já disse que, no formidável e harmônico esforço do escrete, todos parecem merecer uma glória igual. É dificílimo destacar este ou aquele. Mas há, no caso de Didi, certas circunstâncias que projetam o craque em alto-relevo. O torcedor estava errado quando o imaginava incapaz de paixão, incapaz de gana, incapaz de garra. Molhou a camisa, derramou até a última gota de suor, matou-se em campo. Quando o rei Gustavo da Suécia veio apertar-lhe a mão, eu imaginei ao ouvir no rádio a descrição da cena: — dois reis! Pois Didi, como sempre tenho dito aqui, lembra um rei ou príncipe etíope de rancho. 

Com as suas gingas maravilhosas, ele, em pleno jogo, dava a sensação de que lhe pendia do peito não a camisa normal, mas um manto de cetim azul, com barra de arminho. 

[Manchete Esportiva, 5/7/1958]

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